Diante da sede do infinito, presente em todo coração humano, Deus nos dá uma resposta em Cristo Jesus. Como Pedro, confessamos a nossa perplexidade e a nossa confiança nessa resposta de Deus “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavra de vida eterna” (Jo 6, 68). Consciente disso, a Igreja proclama “que chave, o centro e o fim da história humana se encontra em seu Senhor e Mestre” (GS, n. 10,2).
Com Jesus se faz presente o reino de Deus, o Mistério revelado entre nós. Nos evangelhos Jesus está a serviço do Reino de Deus que, para ele, é realidade última. Ele é o mediador absoluto e definitivo do Reino. E para compreender o que o Novo Testamento quer dizer, anunciar e propor ao falar do Reino de Deus é preciso mergulhar no Jesus histórico e em sua prática. Por sua vida, suas palavras e ações, por sua doação total na cruz e gloriosa ressurreição ele revela ao mundo o amor e o projeto de salvação do Pai que nos ama a todos. Nisso se baseia a Igreja, corpo de Cristo, portadora da sua mensagem, lugar de participação na vida nova que Jesus veio trazer. Aí se encontra o centro do anúncio, da proposta transformadora do Evangelho.
O mistério está no centro da fé
Jesus, ao falar do Reino, chama-o de mistério: “A vós é confiado o mistério do Reino de Deus” (Mc 4,11;Mt 13,11). Ser cristão é participar desse mistério e se comprometer com ele. Requer uma mudança de vida, é fruto de experiência, não apenas de conhecimento. O conceito de mistério aparece pouco mo Antigo Testamento, mas é muito usado por Paulo. Era algo bem presente nas religiões pagãs. No cristianismo adquire um sentido totalmente novo: é a presença do Reino de Deus presente em Jesus.
A mensagem final do Sínodo dos Bispos de 2008 fala na voz da Palavra, (a Revelação que ultrapassa a Bíblia), no rosto da Palavra (Jesus Cristo, Verbo que se fez um de nós), na casa da Palavra (a Igreja, como povo de Deus) e nos caminhos da Palavra (a missão, que leva a experiência a outros). Todos esses aspectos da Palavra são mergulhos no Mistério de Deus e da vida.
O termo mystérion é fundamental no Novo Testamento. Foi usado para manifestar o desígnio divino de salvação que para Paulo se concentra na pessoa de Jesus, sua vida, morte e ressurreição. Paulo contrapõe a “sabedoria humana” à “sabedoria misteriosa de Deus” (1Cor 2,7) e diz que sua missão é fazer conhecer a gloriosa riqueza deste mistério em meio aos gentios, ou seja, “o Cristo no meio de vós” (Cl 1,27) e também iniciar os cristãos “no pleno entendimento e no conhecimento do mistério de Deus, que é Cristo, no qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Cl 2,2-3; cf. Ef 1,9-10; 6,19).
Iniciação: mergulho pessoal no mistério
A mensagem cristã apresenta como mistério leva naturalmente à realidade da iniciação. No nosso imaginário o mistério carrega em si algo fascinante, sublime, surpreendente, deslumbrante, inacessível ao simples mortal. Enfim, algo de divino, de fantástico e espantoso. O mistério é um segredo que se manifesta somente as iniciados. Diferentemente de outros conhecimentos ou práticas, não se tem acesso ao mistério através de um ensino teórico, ou com aquisição de certas habilidades. Para ter acesso aos divinos mistérios a pessoa precisa, de uma maneira ou de outra, ser iniciada a essas realidades maravilhosas através de experiências que marcam profundamente.
Os discípulos de Jesus, no anúncio do Evangelho, lançaram mão dessa realidade tão humana e arraigada nas culturas, de tal modo que o cristianismo foi até confundido com uma das tantas religiões iniciáticas que pululavam no Oriente Médio. Mas, algo muito mais profundo: para participar do mistério de Cristo Jesus é preciso passar por uma experiência impactante de transformação pessoal e deixar-se envolver pela ação do Espírito. O processo de transmissão da fé tornou-se, sim, iniciático em sua metodologia. A profissão e vivência da fé cristã, não são algo natural. A “alma naturalmente cristã” de que fala Tertuliano, se refere mais às generalidades da religiosidade cristã, e não tanto ao específico seguimento de Jesus e os mistérios do Reino, assumir os compromissos de seu caminho, viver a ascese requerida pela moral cristã... São realidades muito exigentes. Enfim, a verdadeira conversão ou metanóia (mudança de mentalidade) supõe uma certa maturidade humana e toca as mais profundas tendências humanas.
Existe, porém, uma tensão entre o aspecto de segredo, ligado à idéia de mistério, e a necessidade de anúncio, de proclamação da mensagem que nos foi comunicado através do que nos foi revelado em Jesus. A missão visa proclamar e fazer experimentar o mistério, não escondê-lo. Mas, ao mesmo tempo não podemos banalizar o acesso ao sagrado como se estivéssemos distribuindo algo sem conseqüências mais sérias. O querigma (primeiro anúncio, pregação missionária) é para todos; mas os mistérios são para aqueles que foram iniciados na fé.
Catecumenato: um caminho antigo e eficiente
Desde o século II, a iniciação cristã se fazia através do catecumenato. Foi uma feliz criação da Igreja, num tempo em que ela não podia contar com o apoio de uma cultura cristã na sociedade e ainda havia muito clima de segredo na prática cristã. O núcleo do próprio desenvolvimento do ano litúrgico foi gerado nesse processo. O catecúmeno, que corresponderia ao nosso catequizando de hoje, era visto como aquele “que deve ser iniciado”.
O vocábulo da iniciação cristã foi elaborado pelos Santos Padres: refere-se às etapas consideradas indispensáveis para mergulhar (batismo significa mergulho) no mistério de Cristo e começar a fazer parte da comunidade eclesial em espírito e verdade. O valor desse mistério de Cristo e da Igreja era experimentado e depois explicado numa vivência marcada pelo rito através de uma catequese chamada “mistagógica” (que inicia no mistério).
Essa catequese fazia a pessoa recém batizada perceber o significado, valor e alcance dos ritos realizado. O rito, ao envolver a pessoa por inteiro, marca mais profundamente do que uma simples instrução e interioriza o que foi aprendido e proclamado, realçando a dimensão de compromisso.
Revalorizar hoje esse compromisso
Numa cultura moderna quase que pós-cristã a Igreja se vê diante da necessidade de uma tal iniciação, para formar cristãos que realmente assumam o projeto do Reino. O estudo da CNBB “Com adultos catequese adulta” afirma: “para entender melhor a tarefa da catequese é importante aprofundar o conceito de iniciação Nossa sociedade moderna e pós-moderna perdeu, quase por completo, o elemento cultural da iniciação, tão radicado em outras culturas.” Diz ainda: “Aquilo que os ritos de iniciação representam para a vida sócio cultural de um grupo, a catequese deveria representar para a vida cristã”: é um processo profundo que integra a pessoa num outro estilo de vida.
Daí a necessidade de forma de catequese que estejam verdadeiramente a serviço da iniciação cristã, na complexidade de suas exigências. Sente-se hoje uma necessidade urgente de revisão profunda da nossa prática eclesial, para estabelecer, na função primordial, a iniciação cristã.
A importância e o lugar dos sacramentos
Ao traduzir o termo mistério do grego para o latim usou-se a palavra sacramento que na bíblia e no início do cristianismo, tinha um sentido bem amplo: eram as ações salvadoras de Deus. Nesse sentido, tudo o que a Igreja realiza é mistério como uma ação sagrada na qual o fato salvífico se faz presente no rito. A comunidade, ao celebrar o rito, toma parte na ação salvadora e recebe para si a graça divina. O Vaticano II incorporou esse conceito: fala do mistério Pascal, mistério da Igreja, mistério da salvação, plano de Deus, sacramento.
Resumindo as perspectivas do Vaticano II, os estudiosos afirmam que o mistério (nos sacramentos), a liturgia torna presente para cada crente e para todos os crentes, de qualquer época, a plena realidade da obra de salvação realizada uma vez por todas em Cristo Jesus.
Importantes na concepção de mistério são os símbolos, inspirados na experiência humana e na realidade cósmica. Ao mesmo tempo em que revelam, escondem a realidade divina que querem comunicar. Lemos no Catecismo da Igreja Católica: “A liturgia da Igreja pressupõe, integra e santifica elementos da criação e da cultura humana conferindo-lhe a dignidade de sinais da graça, da nova criação em Jesus Cristo” (n.1149). Diante disso, uma parte essencial da iniciação cristã, coroamento do processo iniciático, é justamente mistagógica.
Mas identificamos um problema nesse processo
É muito comum criticar um certo tipo de catequese, considerada sacramentalista. Com isso se quer falar do costume de fazer do sacramento uma espécie de “festa de formatura”, fim do caminho, despedida da Igreja. O sacramento vira uma espécie de costume, uma devoção a mais, sem consideração do conjunto do compromisso de fé que ele sinaliza e exige. E aí temos um desafio. Precisamos afirmar que todo verdadeiro processo catequético desemboca na celebração dos sacramentos, como momento culminante da participação no mistério de Cristo. O Vaticano II afirma que a liturgia é cume e fonte da vida cristã. O sacramento é a conseqüência de uma fé assumida, mas também realimentação contínua dessa mesma fé. Celebramos porque cremos e assumimos (é o cume, sinal máximo de vivência e compromisso), mas, ao celebrar fortalecemos essa crença e esse compromisso, nos alimentamos na fonte, o que nos leva a celebrar de novo, num processo que se auto-sustenta.
Portanto a catequese deve levar ao sacramento. Não tem sentido fazer de outro jeito. Mas, só um bom processo de iniciação Poe dar ao sacramento o lugar que lhe cabe, que não faça dele um ponto de chegada sem prosseguimento de caminho.
Uma iniciação que leve a uma real participação
Hoje vivemos na cultura em geral uma grande demanda de transcendência, de uma certa religiosidade difusa, que busca contato meio às cegas com o sagrado no torvelinho das angústias da vida. È claro que tempos que considerar esse dado, mas a iniciação cristã não é uma estratégia que busca se aproveitar das exigências desse tipo de “mercado religioso”.
A restauração do catecumenato, solicitada pela Igreja com a devida inculturação, quer retomar a dimensão mística, celebrativa, da catequese, considerando que um dos aspectos essenciais da educação da fé é levar as pessoas a uma autêntica experiência cristã, na integridade de suas várias dimensões.
Não mera ampliação do número de fiéis. É um processo de compromisso, adesão, transformação. Um documento do episcopado espanhol define assim a iniciação cristã: “a incorporação do candidato, mediante três sacramentos da iniciação, no mistério de Cristo, morto e ressuscitado, e na comunidade da Igreja, sacramento da salvação, de tal modo que o iniciado, profundamente transformado e introduzido na nova condição de vida, morte ao pecado e começa uma nova existência de plena realização. Essa inserção e transformação radical, realizado dentro do âmbito de fé da comunidade eclesial, onde o cristão vive e dá sua resposta de fé, exige, por isso mesmo, um processo gradual ou itinerário catequético que o ajude a amadurecer na fé” (Conferência Episcopal Espanhola, Iniciación Cristiana, n. 43).
O estudo da CNBB “Com adulto catequese adulta” descreve assim a iniciação cristã: “é processo de preparação, compreensão vital e de acolhimento dos grandes segredos (mistérios) da vida nova revelada em Jesus Cristo. O cristão convencido vai, então,aprofundando a acolhida do amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo e se colocando na dinâmica do amor serviçal aos irmãos. Nesse itinerário ele vai experimentando a fé nos gestos salvíficos, nas palavras de Jesus Cristo, vividos e comunicados pela Igreja através do testemunho de vida, da Palavra, dos Sacramentos e se abrindo à esperança que não engana (escatologia). Essa era a função maior da catequese no início do cristianismo, no processo conhecido como catecumenato...” (Estudos da CNBB 80, Com adulto, catequese adulta, São Paulo: Paulus 2001. N. 103).
Natureza da iniciação cristã
Podemos descrever a natureza da iniciação cristã com algumas características. Elas, além de aprofundar seu sentido, mostra a diferença e o distanciamento com relação aos ritos mistéricos pagãos.
A Dei Verbum afirma que Deus, em sua sabedoria e imensa bondade, quis revelar-se a Si mesmo e manifestar o mistério de sua vontade: por Cristo, a Palavra feito carne e no Espírito Santo, todos podemos chegar ao Pai e participar de sua natureza divina (DV, n.2). Aí encontramos o objetivo final da iniciação cristã, seu conteúdo e, sobretudo, sua origem: ela é obra do amor de Deus. A iniciação cristã é graça benevolente e transformadora, que nos precede e nos cumula com os dons divinos em Cristo. Ela se desenvolve dentro do dinamismo trinitário: os três sacramentos, numa unidade indissolúvel, expressam a unidade da obra trinitária na iniciação cristã: o Batismo nos torna filhos do Pai, a Eucaristia nos alimenta com o Corpo de Cristo e a Confirmação nos unge com a Unção do Espírito.
Esta obra do amor de Deus se realiza na Igreja e pela Igreja mediante a Igreja. Como corpo de Cristo, sinal e germe do Reino, é a Igreja que anuncia a boa nova, acolhe e acompanha os que querem realizar um caminho de fé, coloca os fundamentos da vida cristã e principalmente incorpora a Cristo os que estão sendo iniciados pelos sacramentos da iniciação. É importante compreender bem essa dimensão eclesial. As pessoas são iniciadas no mistério de Cristo e na vida da Igreja, não na devoção particular de qualquer pessoa ou de grupo. A ação dos catequistas junto aos catecúmenos, mesmo que se enriqueça com os dons pessoais de cada um, é palavra e ação em nome da Igreja. É através deles, e da comunidade que testemunha e apóia, que a Igreja exerce sua missão maternal de gerar novos filhos.
Este dom de Deus realizado na e pela Igreja tem um terceiro elemento: requer a decisão livre da pessoa. Pela obediência da fé a pessoa se entrega inteira e livremente a Deus e lhe oferece a homenagem total de sua inteligência e vontade. No processo ou itinerário de iniciação a pessoa é envolvida inteiramente em todas as esferas e dimensões do ser. O fracasso ou falta de perseverança no caminho da fé se deve, muitas vezes, à falta deste envolvimento total dos iniciados. Se isso é verdade para crianças e jovens, muita mais o é para os adultos.
Por fim, a iniciação cristã é a participação humana do diálogo da salvação. Somos chamados a ter uma relação filial com Deus. Com a iniciação cristã o catecúmeno começa a caminhada para Deus que irrompe em sua vida e caminha com ele. Essa vida nova, essa participação na natureza divina constitui o núcleo e coração da iniciação cristã. O iniciado, transformado e introduzido na nova condição de vida, morre ao pecado e começa uma nova existência.
Uma visão de conjunto da vida cristã
O estudo “Com adulto, catequese de adulta”, fala da iniciação cristã a partir do conjunto da missão da Igreja, propondo uma iniciação bem abrangente, que complete as várias dimensões da vida cristã: “conhecer a catequese como iniciação à vida cristã implica assumi-la como um longo processo vital de introdução dos cristãos ainda não iniciados, seja qual for sua idade, nos diversos aspectos essenciais da vida cristã. É óbvio que não se trata de tudo, o que é impossível, mas de um todo elementar e coerente, como base sólida para a caminhada rumo à maturidade em Cristo” (Estudos da CNBB 80, Com adulto, catequese adulta, São Paulo: Paulus 2001. N. 104).
É bom perceber que isso nos remete a um equilíbrio. A iniciação não vai ser uma catequese completa; mesmo uma vida inteira não basta para reconhecer e experimentar tudo que pode enriquecer a fé. Mas ela deve apresentar um panorama sem deformações que aconteceriam se faltasse alguma dimensão importante da vida da Igreja.
A iniciação cristã como caminho para a Deus
Palestra: A iniciação cristã como caminho para o encontro com Deus
Pe. Dezenilton da Silva Santos